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Então CompartilheNesta semana, estudamos duas porções unificadas da Torá, as quais se fundem como uma só, para serem lidas e estudadas nesse molde especial: Chukat e Balak. Antes de adentrarmos em algumas reflexões que Chukat e Balak possibilitam, uma pergunta salta à vista: por que em certos Shabatot durante o ano judaico lemos perashiôt mechubarôt, ou seja, porções juntas como uma só? O Rabino Alfred Kolatch explica em seu livro This is The Torah (1985), traduzido no Brasil como Os Porquês da Torá (2004, p. 137): “basicamente, a combinação é feita para assegurar que as 54 porções nas quais é dividido o Pentateuco sejam lidas durante todo o decurso do ano, para que o ciclo anual de leitura da Torá seja concluído sempre em Simchat Torá”. Ademais, o Rabino Alfred acrescenta: “o fato de o calendário judaico ter sete anos bissextos a cada ciclo de dezenove anos, e que nesses anos um mês de Adar adicional é agregado ao calendário, afeta a combinação ou a separação das Sidrôt [Perashiôt]” (2004, p. 137).
Meu objetivo é fazer uma reflexão a partir de parte de um passuk (versículo) junto com dois pessukím da Perashat Chukat que convergem com a Perashat Balak, estabelecendo, assim, um profundo vínculo entre ambas: “[...] E do deserto foram a Mataná, e de Mataná a Nachaliel, e de Nachaliel a Bamot; e de Bamor ao vale que está no campo de Moab, no cume da colina que olha para Ieshimon (deserto)” Bamidbar/Números 21:18-20. Ipsis litteris, esse texto frisa parte das andanças geográficas de Am Israel com seus deslocamentos e pausas acampamentais durante os quarenta anos anteriores à entrada definitiva na Terra Prometida. Não obstante, há algo muito além do sentido lato textual: um rémez (alusão) que encaminha para um mussar (lição moral). À vista disso, (re)leamos esta Mishná:
Ribi Yehoshua ben Leví dizia: [...] e é dito: as Tábuas são obra de D'us e a escrita delas é Escritura de D'us, gravada sobre as Tábuas [Shemôt 32]. Não leias apenas como "gravada" ['harut], mas também como liberdade ['herut], pois, quanto a ti, não há filho da liberdade [ben 'horín] senão quem se ocupa do Estudo da Torá. E todo aquele se ocupa do Estudo da Torá, este será exaltado, pois foi dito: "E de Mataná a Na'haliel e de Na'haliel a Bamôt" [Bamidbar 21]. Avôt VI:2 (Cf. Eruvín 54a).
O Rabino Irving Bunim ZT”L, em seu comentário sobre Avot, traz a interpretação do sábio cabalista espanhol Ribi Shem Tob ibn Shem Tob, parafraseada por esse autor. Para Ribi Shem Tob ibn Shem Tov, “nomes de lugares também contém significados ocultos da Torá”, de modo que “se assim não fosse, por que haveria a inesperada inserção do salmo em meio a esses nomes de lugares?” (2001, p. 450). O salmo em questão da Perashat Chukat é o cântico do poço, o qual, para Ribi Shem Tob Ibn Shem Tob, também se refere à nossa Sagrada Torá, “a própria fonte propulsante da sabedoria viva e sagrada do Todo-Poderoso”. Embora não seja o escopo deste texto tratar do cântico do poço, é oportuno em linhas gerais salientar um aspecto que reforça a interpretação oferecida pelo supracitado sábio espanhol cabalista.
Rabino Aryeh Kaplan ZT”L traz outra interpretação de que os versículos supracitados não estão tratando das jornadas de Am Israel, mas do poço. Para os sábios que sustentam essa referência ao poço, “a corrente fluindo do poço eventualmente cobriu ‘lugares altos’ (Baalê Tossafot)”, que é a tradução de Bamot, nessa opinião, segundo a qual, “o poço aumentou de uma mera dádiva para um fluxo poderoso (Baalê Tossafot)”, tradução de Nachaliel, ainda segundo essa opinião (2013, p. 773, 774). Dialogando com essa interpretação, conforme traz o Rabino Kaplan ZT”L em seu comentário sobre a Torá, Ribi Iehudá, o piedoso, e Chizkuni, interpretam que “os israelitas talharam uma trincheira ou canal, fazendo a água do poço fluir para Mataná”.
Visto que os sábios tossafistas viveram durante a época de Ribi Shem Tob Ibn Shem Tob, é muito provável que a interpretação deles também serviu de base para esse sábio cabalista espanhol aplicar o poço à Torá. O motivo é que os nomes não falariam das jornadas de Am Israel, mas dos estágios do fluxo muito forte do poço, que favorece a interpretação metafórica de que esses estágios também se referem à pessoa que sempre evolui no Talmud Torá: do peshat do poço físico se caminha para o rémez/drash/sod do poço metafísico da Torá.
Finalizando esta primeira parte quanto à Perashat Chukat, ainda é preciso que consideremos este trecho da Guemerá sobre os versículos do poço: Rav Iosef quer saber de Rava qual é o significado dos versículos de Números 21:18-19. Prontamente, Rava responde e explica:
Quando o ser humano se torna como um deserto, que é abandonado perante todos, a Torá é dada para essa pessoa como uma dádiva (mataná), conforme é dito: “e do deserto, Mataná”. Uma vez que lhe foi dada como uma dádiva, D’us a dará como herança [nachalô], como é dito: “E de Mataná, Nachaliel”. E uma vez que D’us lhe deu por herança, a pessoa é elevada à grandeza, conforme está dito: “E de Nachaliel, Bamot”. Mas se a pessoa se arroga, o Santo, Bendito seja Ele, o rebaixa, conforme é dito: “E de Bamot, o vale”. E não só isso, mas também que Ele o abate até o chão, conforme é dito: “Que olha para o Ieshimon” (Números 21), mas se a pessoa se arrepende, o Santo, Bendito seja Ele, a eleva (Nedarim 55a).
A lição que a Guemará sobredita nos traz é que o deserto é uma metáfora para a humildade e o esvaziamento do ego insuflado do ísmo. Uma pessoa que tem essas características está preparada para receber a Torá em seu estudo diário. Por conseguinte, a finalidade primordial e contínua da Entrega da nossa Torá no Sinai é para ela ser instrumento de liberdade e evolução, com seu estudo/observância acompanhado pelo cultivo constante da humildade em detrimento da arrogância: “de toda pessoa detentora de arrogância, diz o Santo, Bendito seja Ele: Eu e ele não podemos morar juntos no mundo” (Sotá 5a; Cf. Arachín 15b; Cf. Midrash Tehilim 101:3).
Em que ponto dos referidos versículos analisados de Chukat encontramos algum ponto de convergência dela com a porção Balak? “E de Bamot ao vale que está no campo de Moab” (Numeros 21:20): Am Israel acampa em Moab. Dá-se início a várias guerras que culminam com a conquista inicial territorial, contra Sichón, Amalek (Cf. Rashi sobre Números 21:1) e Og. Além da palavra-chave “Moab” aparecer nos pessukím do cântico do poço ou das jornadas mencionadas neles, é evidente que o primeiro versículo de Perashat Balak é continuação do último versículo da Perashat Chukat (Números 21:1). Não demorou muito para o rei Balak agir contra o nosso povo, pois estava com medo de ser destruído com seu povo após tomar conhecimento das vitórias de Am Israel nas guerras recentes com a ajuda de HaShem.
Balak mandou chamar a Bilam (Balaão) para que este proferisse maldições contra o Povo de Israel. Embora Bilam tivesse a intenção de amaldiçoar para satisfazer seu imenso desejo materialista, isso não foi realizado, mas, sim, ele alçou sua voz em proferir bênçãos para os judeus, qualificando-lhes as virtudes. Vamos ver algumas interpretações que os nossos sábios dão para a mais famosa afirmação das bênçãos dadas por Bilam, vista como demonstração da elevação do povo judeu como fruto de sua Devekut (Apego a HaShem), a despeito dos percalços e do sofrimento nesta longa Galut:
“Quão belas são as tuas tendas, ó Jacob, as tuas moradas, ó Israel!” (Números 24:5).
Rashi inicia sua interpretação trazendo uma opinião do Tratado Bava Batrá 60a: ele sustenta que a expressão “Quão belas são as tuas tendas” é porque Bilam observou que as entradas das tendas não ficavam frente à frente. Isso pode se referir ao fato de que havia recato. Outrossim, Rashi sustenta que “tuas moradas” significa, como Onkelos coloca, “teus acampamentos”.
Outra interpretação: “Quão belas são as tuas tendas” são o Tabernáculo de Shiló e o Eterno Templo Sagrado nos quais eles moraram e para os quais trouxeram korbanôt (sacrifícios) para expiação. Rashi também frisa que “tuas moradas” se refere a “mesmo que os Templos tenham sido destruídos, eles ainda assim são mantidos como garantia para vocês, cuja destruição serve de capará (expiação) para suas almas, como está dito: “O Eterno descarregou a Sua ira” (Lamentações 4:11). E como Ele a descarregou? Lançando fogo sobre Tsion”, interpretação extraída do Midrash Tanchuma, Pekudê 4. Do cotidiano recato do lar até a recordação da destruição dos Templos Sagrados, Rashi oferece um panorama atemporal para que compreendamos as palavras de Bilam.
Ribi Obadiá Seforno explica que “Quão belas são as tuas tendas, ó Jacob” se refere às Casas de Estudo, semelhante a habitando em tendas (Gênesis 25:27) e a “E ele habitou nas Tendas de Shem” (Gênesis 9:27), como também se refere a “E todo aquele que buscasse ao Eterno saía à Tenda da Reunião” (Êxodo 33:7). Quanto à expressão “tuas moradas, ó Israel”, Seforno sustenta que se refere às Sinagogas e aos Templos do Eterno, designados para Seu Nome habitar neles e aceitar a reza dos que rezam. Bilam disse “quão belas” não só com respeito às pessoas que se beneficiam de estar ocupadas neles, mas também ao benefício de toda a nação, pois o nome Jacob indica por meio de ékev (permanente) que Am Israel permanecerá até fim dos dias. Não cessaremos de existir como o nome Israel indica, pois que lutaremos com Elokim e com os homens e venceremos.
Ben Ish Chai, Halachôt, Ano 1, Balak, também sob o ponto de vista haláquico, vê nesse versículo uma alusão às cem bênçãos diárias que devem ser feitas, pois são uma takaná (decreto) de David hamélech como tikun para a morte provocada devido à contagem de pessoas de Am Israel, que ele descobriu por Inspiração Divina. Outrossim, como aponta Ben Ish Chai, a guematria (valor numérico) de neum hagéver hukam al é meá (100), de modo que ele vê um rémez (alusão) às cem bênçãos diárias. Já na secção Derashôt, Balak 19, Ribi Chaim de Bagdá interpreta “Quão belas são as tuas tendas” como se referindo à tseniút (recato), dialogando, assim, com Rashi.
Or haChaím interpreta “tendas” se referindo àquelas pessoas que se ocupam de forma apresada com o Estudo da Torá por causa do conceito de “tendas” como habitações temporárias, sem muita duração. Já “Moradas”, Ribi Chaim ben Atar interpreta como se referindo a “residências permanentes” aquelas pessoas que se ocupam da Torá de modo permanente e fixado.
É impressionante como um versículo que consta das bênçãos proferidas por Bilam apresenta várias formas de interpretação e todas elas se complementam, focando o passado, o presente e o futuro da nossa história como povo. Ao mesmo tempo, o cotidiano familiar e comunitário é englobado nessas opiniões de nossos chachamím. Mesmo com as tragédias envolvendo a destruição dos dois Templos Sagrados, essa destruição ainda serve de penhor para expiação.
Mesmo a madeira de shitim (acácia), utilizada para construção do Mishkan, aponta para a expiação do pecado cometido em Shitim, que ocorreu por conselho de Bilam a Balak (Rashi sobre Números 25:1; San’hedrín 106a). Como? Conforme o Ba”al haTurim, a expressão “laMishkan atsê Shitim omedím”, “Para o Tabernáculo, madeiras de Shitim [acácia] eretas” (Exôdo 26:15), tem o mesmo valor numérico (1133) da expressão lechapêr lemaasseh Shitim (para expiar a ação de Shitim). Além disso, curiosamente, a palavra Shitim aparece 24 vezes na Torá, 23 em Êxodo e 1 em Deuteronômio: para servir de expiação para os 24 mil que morreram em Shitim (Cf. Números 25:9). Da mesma forma, a ação de Pinechás (Números 25:8-9; Salmos 106:30; Cf. San’hedrin 44a), que resultou na cessação da maguefá (praga/epidemia), cujas reflexões mais específicas ficam para o comentário sobre a próxima perashá, que se chama pelo nome dele.
E que brevemente, em nossos dias, possamos ver o Bêt haMikdash reconstruído e a gueulá no mundo.
Shabat Shalom!
autor: Hazan professor Fernando Oliveira
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